A Inteligência Artificial generativa parece mágica. Ela vive na “nuvem”, mas sua operação tem um custo físico real, gerando uma pegada hídrica da IA que é vastamente subestimada. O que não vemos é que essa “nuvem” tem uma base física em data centers que, para funcionar, consomem uma quantidade assustadora de recursos. E um dos mais preciosos é a água potável.
Enquanto muitos artigos focam em como a IA pode otimizar redes de saneamento e reduzir vazamentos, um paradoxo emerge: a própria tecnologia que promete salvar água está se tornando uma das maiores consumidoras.
Por que a “nuvem” precisa de tanta água?

A resposta curta é: para se resfriar. O processamento de IA é uma das tarefas computacionais mais intensas que existem. Suas etapas são divididas da seguinte forma:
- Processamento Intenso: treinar e operar modelos de IA (como os que alimentam o ChatGPT ou o Gemini) exige um poder computacional massivo.
- Geração de Calor: esses cálculos complexos, feitos em chips de alta performance (GPUs), geram uma quantidade imensa de calor.
- Resfriamento Líquido: o resfriamento a ar tradicional não é suficiente. Por isso, os data centers modernos usam sistemas de resfriamento líquido.
Onde entra a água?

A água circula pelo sistema para absorver o calor dos servidores. Essa água quente é então bombeada para torres de resfriamento, onde evapora para liberar o calor na atmosfera.
Não se trata de qualquer água. Para evitar corrosão e o crescimento de bactérias no sistema, os data centers utilizam água limpa, muitas vezes potável. Essa água, uma vez evaporada, é essencialmente perdida do ciclo hídrico local, competindo diretamente com a água para consumo humano e agricultura.
Quanta água a IA realmente “bebe”, em números?
Aqui é que a escala do problema se torna alarmante. Como o acesso a dados detalhados das empresas é difícil, pesquisadores têm se dedicado a estimar essa pegada hídrica.
O Custo de Treinar um Modelo
Um estudo de 2023 de Shaolei Ren, professor da Universidade da Califórnia em Riverside, estimou que o treinamento do GPT-3 (um modelo anterior ao usado hoje) nos data centers da Microsoft pode ter consumido 700 mil litros de água potável.
O Custo de uma Conversa
O mesmo estudo estima que uma simples conversa de 10 a 50 perguntas e respostas com um chatbot de IA pode “beber” o equivalente a 500ml de água. Pense nisso: cada vez que você pede para a IA “escrever um e-mail” ou “corrigir um código”, é como se ela bebesse uma garrafa de água.
Os Relatórios das Big Techs
Os dados das próprias empresas confirmam a tendência, embora não especifiquem o quanto é exclusivo da IA:
- Microsoft: Relatou um aumento de 34% no consumo de água de 2021 para 2022, atingindo quase 6,4 bilhões de litros. Esse salto é amplamente atribuído à sua massiva infraestrutura de IA.
- Google: Em 2022, consumiu 21,2 bilhões de litros de água, um aumento significativo em relação aos anos anteriores, com grande parte destinada ao resfriamento de seus data centers.
O custo real de um prompt

De acordo com uma declaração de Sam Altman, CEO da OpenAI, uma interação com o ChatGPT consome “menos de um décimo de uma colher de chá” de água. Embora ele tenha tentado minimizar o problema, alguns estudiosos discordam.
O professor Shaolei Ren, por exemplo, é cético em relação a essa afirmação, destacando que não há dados públicos suficientes da OpenAI para verificar esse número. A diferença entre a “gota” de Altman e os “500ml” dos pesquisadores mostra o cerne da questão: a falta de transparência.
O problema da transparência
Este é o ponto-chave do debate atual. As gigantes de tecnologia são notoriamente reservadas sobre seus dados operacionais.
Uma investigação realizada pela BBC, mostra relatórios ambientais preocupantes envolvendo as Big Techs. Por exemplo:
- Agregam o consumo de água, misturando o que é usado em escritórios com o que é usado em data centers.
- Não diferenciam a água usada para operações gerais daquela usada especificamente para cargas de trabalho de IA.
- Não separam o custo hídrico do treinamento (um gasto inicial massivo) do custo da operação (o uso diário por nós, usuários).
Lorena Jaume-Palasí, fundadora da The Ethical Tech Society, em entrevista à BBC, ressalta a gravidade disso: essa água está sendo retirada de circuitos hídricos que são necessários para a vida humana e a agricultura.
Como fica o gasto de água pela IA no Brasil?
O cenário futuro no Brasil, apontado pela reportagem, também é preocupante. A demanda de energia para data centers no país deve crescer mais de 20 vezes até 2038. Embora soluções locais, como o uso de biometano (citado na reportagem por Fabro Steibel, do ITS Rio), estejam sendo consideradas, a verdade é que mais data centers significarão uma pressão maior sobre nossos recursos de energia e, consequentemente, de água.
A IA não é mágica, é um recurso físico

A Inteligência Artificial não vive em uma “nuvem” etérea. Ela vive em edifícios físicos que consomem recursos reais. O “custo invisível” de cada resposta de chatbot é pago em milhões de litros de água potável.
Para que possamos ter um debate honesto sobre os benefícios e malefícios da IA, precisamos de transparência radical por parte das empresas de tecnologia. Precisamos saber o custo real: em água, em energia e em emissões de carbono, da revolução que nos está sendo vendida como puramente digital.


